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Sabor de burrice

24/10/2014 06:00:08

Tom Zé: sempre crítico e criativo.
Tom Zé: sempre crítico e criativo.

Por Carlos Ávila

“Veja que beleza/em diversas cores/veja que beleza/em vários sabores/a burrice está na mesa”. Assim começa uma canção de Tom Zé, feroz e ferina, embalada por um arranjo propositalmente “caipira” (aliás, o compositor baiano faz a diferença até hoje, continua fiel ao espírito crítico tropicalista). “Sabor de burrice”, título da música, registrada no seu primeiro disco, é uma espécie de cantiga de escárnio e maldizer, à moda dos antigos trovadores.

De fato, a burrice faz estragos por onde passa, em todas as áreas (até mesmo na educação!); “ensinada nas escolas/universidades/e principalmente/nas academias/de louros e letras/ela está presente”, segundo Tom Zé. “E já foi com muita honra/doutorada honoris causa”. Infelizmente, há sempre espaço para o crescimento da burrice – da tolice e da estupidez. “Só mesmo a estupidez humana é que pode dar uma ideia do infinito”, escreveu o poeta norte-americano Ezra Pound (1885/1972), no seu “ABC da Literatura”, citando o filósofo francês Renan.

Mas voltemos à letra satírica da canção de Tom Zé. Ele acrescenta mais sobre a burrice: “refinada poliglota/ela é transmitida/por jornais e rádios/mas a consagração/chegou com o advento/da televisão”. Realmente, a burrice é disseminada todos os dias pela mídia; hoje ainda mais pela internet, pelas redes sociais (o compositor não poderia prever isso em 1968, ano em que seu disco foi lançado). Com todo o aparato comunicacional existente atualmente, a burrice tem divulgação e influência garantidas. Talvez se trate de um novo, veloz e voraz, “Febeapá” (Festival de besteira que assola o país), para repor em circulação a expressão cunhada pelo escritor e humorista Sérgio Porto (1923/1968) – o Stanislaw Ponte Preta, na época da ditadura militar.

E as convenções linguísticas também não ficam de fora da canção mordaz de Tom Zé; como observa o crítico e letrista Carlos Rennó, o compositor “assume um discurso retórico-acadêmico, num emprego consciente do mau gosto para efeito crítico”, dirigindo-se novamente à burrice: “conferindo rimas/com fiel constância/tu trazeis em guarda/toda concordância/gramaticadora/da língua portuguesa/eterna defensora”.

Neste próximo domingo todos os brasileiros estarão indo às urnas para eleger o novo presidente do país. Antes, deveriam reouvir a canção de Tom Zé e levar em conta os seus versos mais certeiros e contundentes, quando o baiano de Irará afirma cantando que a burrice “não tem preconceito/ou ideologia/anda na esquerda/anda na direita/não escolhe causa/e nada rejeita”.

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