Para ler em qualquer lugar
08/10/2014 06:00:44

Por Carlos Ávila
“A cidade imita em papelão uma cidade de pórfiro.
Caravanas de montanhas acampam nos arredores.
O Pão de Açúcar basta para adoçar a baía inteira… O Pão de Açúcar e seu teleférico que há de perder o equilíbrio por não usar uma sombrinha de papel”.
Assim começa um dos “20 poemas para ler no bonde” do argentino Oliverio Girondo (1891/1967), captando verbo-visualmente a paisagem do nosso Rio de Janeiro, no início do século 20. Lançado em 1922, na França (e só em 1925, na Argentina), “Viente poemas para ser leídos en el tranvía” (título original) traz a marca do modernismo então em voga na Europa – futurismos italiano e russo; dadaísmo, expressionismo alemão etc. – e, por influência direta, também na América Latina (criacionismo e modernismo brasileiro).
Acabam de sair no Brasil, numa pequena e bem cuidada edição, os “20 Poemas” de Girondo, em tradução de Fabrício Corsaletti e Samuel Titan Jr. O livro inclui, além dos textos, belas fotografias em p&b de Horacio Coppola (1906/2012), com imagens de Buenos Aires (a maioria delas), Paris, Berlim e Rio de Janeiro. Completam o volume da Ed. 34 algumas reproduções a cores da primeira edição francesa, com ilustrações originais do próprio Girondo. Outro importante livro do poeta, o experimental “En la masmédula”, de 1954, já havia sido traduzido anteriormente por Régis Bonvicino (“A pupila do zero”, lançado em 1995).
Na verdade, trata-se de uma quase-prosa poética, fragmentária e algo cubista, formando uma espécie de diário de viagem do poeta portenho por cidades diversas: o já mencionado Rio, Buenos Aires e Mar Del Plata, Dakar, Sevilha, Veneza, Paris etc. Movimentados e divertidos, esses “recortes” poéticos da paisagem – com carros, mulheres, árvores, mesas de cafés, vitrines e luminosos – são compostos em linguagem modernista por excelência, unindo lirismo e olhar vanguardista: “A manhã sai a passeio na praia polvilhada de sol”; ou ainda: “Palmeiras que à noite se estiram para espanar o pó que entrou na pupila das estrelas”. Lembram o estilo “telegráfico” do primeiro Oswald de Andrade.
Girondo era milionário e bon vivant; filho de pais ricos viveu toda sua vida entre a Argentina e a Europa, desde criança (viajou muito por todo o mundo). Mas foi um poeta produtivo, que publicou vários livros e se tornou uma figura importante na história das vanguardas hispano-americanas, ao lado de Borges (seu companheiro no movimento ultraísta), do chileno Vicente Huidobro, do peruano César Vallejo e do mexicano José Juan Tablada.
A imediatez e a visualização das imagens de Girondo, que Borges ressaltou ao escrever sobre seu segundo livro (“Calcomanías”, de 1923), já estavam presentes nesses “20 poemas para ler no bonde”. Trata-se de um livro que se destaca em meio à poesia moderna do século passado, especialmente a hispano-americana, ainda a ser mais bem conhecida entre nós. São poemas que merecem ser lidos a toda hora e em qualquer lugar (já que não temos mais bondes por aqui…).