Voz de veludo
01/10/2014 06:00:23

Por Carlos Ávila
“No apartamento azul/do nosso coração/há rosas de Istambul/e jarros do Japão//É um sonho oriental/de mágico esplendor/a aurora boreal/na aurora de um amor…”. A voz de Carlos Galhardo (1913/1985) sai dos sulcos de um velho 78 rotações (hoje reproduzido em CD do selo Revivendo). Os versos são da canção “Cortina de Veludo”, de Osvaldo Santiago e Paulo Barbosa, obra-prima do kitsch sonoro nacional. Cantor de origem italiana, nascido na terra do tango (Buenos Aires), Galhardo foi um dos grandes da nossa antiga MPB, ao lado de Francisco Alves, Orlando Silva, Mário Reis e Silvio Caldas.
“E uma cortina de veludo/esconde/a porta oval por onde/um dia hás de entrar…”. Maravilha do kitsch da nossa música popular! Os elementos da letra – rosas de Istambul; jarros do Japão; cortina de veludo etc. – formam um cenário único, uma espécie de quadro naif; “lindo como um poente de folhinha”, diria Nelson Rodrigues. Cenário idealizado para o encontro/enlace amoroso: “E esta cortina há de se fechar/sobre o teu vulto quando/ele a vier transpor/e não mais se abrirá,/meu amor”.
A palavra kitsch (popularmente entendida como brega ou cafona) é de origem alemã; “no sentido moderno, aparece em Munique, por volta de 1860” – conforme assinala o teórico Abraham Moles (1920/1992), autor de um volume voltado para o tema, publicado em 1972; nele analisa inclusive o kitsch musical. Segundo Moles, “o mundo dos valores estéticos não se divide mais entre o ‘belo’ e o ‘feio’. Entre a arte e o conformismo, instala-se a imensa praia do kitsch”.
O kitsch está em toda parte, em objetos (tapetes, bibelôs, estatuetas, monumentos etc.) e na arte: literatura, teatro, pintura, cinema, TV, música… Por exemplo, nesta deliciosa “Cortina de Veludo”, valsa-canção com seus clichês verbais e sonoros, pequeno retrato de um tempo e de uma sensibilidade (anos 1930); kitsch romântico.
Mas o kitsch pode estar presente também na chamada “música erudita” (o termo, um tanto sério e, às vezes, empregado com pedantismo parece diferenciar essa música da banalidade e da redundância, da kitschização, quando não é bem assim). Exemplo de músico erudito kitsch: o inglês Ketèlby (1875/ 1959), com suas composições exóticas, tipo “No jardim de um mosteiro”, “Num mercado persa” ou ainda “No jardim de um templo chinês” – melodias descritivas e açucaradas que, parece, levaram o compositor a ganhar popularidade, na sua época, e um bom dinheiro… O kitsch é fenômeno característico da nossa sociedade de consumo (foi absorvido até pelo design!).
Mas voltemos ao idílico “apartamento azul”, onde a voz de veludo de Galhardo ecoa. O canto é kitsch? A canção é kitsch? Tudo bem. Mas, ouvida hoje, ainda é tocante, na sua beleza anacrônica. E quem consegue viver sem uma dose que seja de kitsch?