Um Quixote em Ouro Preto
04/01/2017 06:00:09

Por Carlos Ávila
Na linha dos trabalhos realizados por Manuel Bandeira (“Guia de Ouro Preto”) e Lúcia Machado de Almeida (“Passeio a Ouro Preto”), Fritz Teixeira de Salles (1917/1981) escreveu “Vila Rica do Pilar (Um roteiro de Ouro Preto)” – publicado em 1965 pela Ed. Itatiaia, de BH.
Com capa e ilustrações de Haroldo Mattos, o livro de Fritz não é apenas “um roteiro”, mas também um ensaio histórico baseado em documentos pesquisados (códices do Arquivo Público Mineiro e da Câmara Municipal de Ouro Preto) e bibliografia específica – compondo um panorama da vida mineira no século XVIII, na antiga Vila Rica.
Poeta, crítico, ensaísta, professor e historiador, Fritz Teixeira de Salles – mineiro de Santa Luzia – é também autor de importantes trabalhos voltados para o período barroco, como o já clássico “Associações Religiosas do Ciclo do Ouro” (1963), talvez o seu ensaio mais importante, e “Poesia e protesto em Gregório de Matos” (1975), onde dá relevância à obra do poeta baiano – o “boca do inferno” – acentuando sua dimensão ideológica e crítica.
Drummond – num texto publicado na imprensa (SLMG – 3/3/1984) – assinala que o livro-roteiro é bem fundamentado, “mostrando como Fritz foi um dos mais argutos intérpretes da formação mineira, pela nítida visão histórica e sociológica que aplicou em sua função de escritor”.
Segue abaixo um fragmento do primeiro capítulo de “Vila Rica do Pilar” (livro que merece ser reeditado) – hommage à grandeza humana e poética de Fritz (intelectual inquieto e libertário, algo provocador e antiacadêmico – que conheci pessoalmente); um “Quixote irresistível” na visão de Drummond.
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Ouro Preto espanta pela unidade do conjunto, imagem de uma civilização talhada nas asperezas da serra e da pedra, nascida do trabalho e da ventura, em determinada circunstância histórica, filha das batalhas do povo contra as tiranias, do sentimento nacional, contra o despotismo, do pequeno contra o grande. Cidade erguida entre pedras, silêncio e sombra, verônica austera de um povo, em certas passagens do seu dia, Ouro Preto sensibiliza real e densamente o forasteiro que tiver olhos para ver e nervos para sentir.
Assim, por exemplo, às seis da tarde, em certas épocas do ano, quando o sol se recolhe e as primeiras sombras avançam sobre telhados, varandas e ruas, igrejas, colinas ou estátuas. O céu, então, se torna rubro-cinza sobre o corte sinuoso dos morros, o silêncio insinua seu poder, o mistério da noite se projeta através da nuance acinzentada que cobre aqueles horizontes pontiagudos de pedra e terra árida. Parece que a ausência de uma vegetação exuberante concorre para aumentar o nosso espanto (…).
E eis que belos cancioneiros, romanceiros vários de Critilos ou Dirceus de antanho, perpassam e sonham por entre as sombras das igrejas, as grimpas das torres, ladeiras sinuosas da cidade que ignora a calmaria das planícies. Pois aqui, tudo se precipita na ânsia das alturas, na queda dos mergulhos. Inquieta ou inconstante é a terra que tanta inquietação plasmou na vida de seu povo. A topografia reflete a história vivida no século XVIII. Século do ouro e do sangue, do medo e das batalhas, traições e desafios, século de poetas, músicos, escultores, arquitetos e humanistas. Tempo que inventou aquela frase até hoje de significação tão permanente nas Minas:
– As paredes têm ouvidos.