O mundo sitiado
31/08/2016 06:00:18

Por Carlos Ávila
Como reagiram os poetas brasileiros à 2ª Guerra Mundial? Responder a esta questão foi o objetivo de Murilo Marcondes de Moura – professor de literatura brasileira da Universidade de São Paulo – no seu livro “O mundo sitiado: a poesia brasileira e a Segunda Guerra Mundial”, lançado este ano pela Ed. 34.
Trata-se de um alentado estudo que se espalha por 372 páginas – originado de uma tese de doutorado apresentada em 1998, na USP. Transformado em livro de linguagem clara e leitura envolvente, o trabalho de Moura tenta dar conta do tema da 2ª Guerra e das marcas do trágico conflito em poemas de Drummond, Oswald de Andrade, Cecília Meireles e Murilo Mendes.
Moura inicia seu livro explorando a relação entre a guerra moderna e a poesia de vanguarda (esta última palavra, aliás, é um termo militar), ainda na época da Primeira Guerra Mundial (1914/18). Esmiúça a mais significativa produção poética daquele período, com ênfase nos textos de Apollinaire (poeta que estudou num pós-doutorado na França, em 2010) e Ungaretti – tanto o francês, quanto o italiano estiveram nas trincheiras. Aborda, também, a poesia do menos conhecido Wilfred Owen, que também esteve no front (Owen é um dos poetas traduzidos por Abgar Renault no seu pioneiro “Poemas ingleses de guerra” – lançado em 1942 e reeditado na década de 70).
O estudioso comenta ainda, en passant, aquele que ele considera o primeiro esboço de poesia de guerra entre nós: “Há uma gota de sangue em cada poema” – livro de Mário de Andrade lançado em 1917. Segundo Moura, a 1ª Guerra “foi um acontecimento inaugural do século XX, trazendo consigo uma crise radical de perspectivas e de linguagens, produzindo uma espécie de obsolescência retórica de modo a exigir formas novas de expressão”. No período, surgem na Europa o dadaísmo e, na sequência, o surrealismo – ambos vanguardistas e renovadores.
Drummond é o primeiro dos poetas brasileiros abordados por Moura; autor de alguns “clássicos” sobre a guerra como “Carta a Stalingrado” e “Visão 1944” – dois longos poemas que recebem análises pormenorizadas e esclarecedoras de Moura. Trata-se do forte verso-prosa do Drummond dos anos 40, num tempo de “viva inclinação pela esquerda” e empatia com o Partidão: “A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais./Os telegramas de Moscou repetem Homero”. As leituras de Moura aproximam ainda Drummond das impactantes gravuras de Goya (“Os desastres da guerra”) e da “Cartilha de guerra” de Brecht – poeta-dramaturgo cujos textos registram também a “visão do horror” bélico.
Segue-se um “intermezzo lírico” no qual Moura se debruça sobre o belo “Cântico dos cânticos para flauta e violão” (talvez o maior poema escrito por Oswald, unindo lirismo e participação): “Te ensinarei/o segredo onomatopaico do mundo/te apresentarei/Thomas Morus/Federico Garcia Lorca/a sombra dos enforcados/o sangue dos fuzilados/na calçada das cidades inacessíveis”.
Finalmente, Moura se dedica aos poemas de Cecília e Murilo. Sobre a primeira, observa que sua resposta à guerra é “civil, já que formulada a partir da experiência privada e doméstica” – de “tom” pacifista (a poeta carioca era uma seguidora de Gandhi). Moura destaca seu poema “Pistoia, cemitério militar brasileiro” – avesso ao discurso heroicizante, segundo ele (recentemente relançado pela Global numa bonita edição fac-símile da primeira, de 1955, pela Philobiblion, com xilogravuras de Manuel Segalá).
Quanto a Murilo (poeta já estudado por Moura no volume “A poesia como totalidade”), o autor observa que sua obra “é sem dúvida aquela em que mais se faz notar a presença da Segunda Guerra”. Mas Murilo observa a guerra pela “janela do caos” de sua linguagem surrealizante, sem nomes ou referências explícitas como ocorre em Drummond: “O enorme monumento de ódio atinge as nuvens/o mundo envenenado/sitia meu corpo exausto”. Moura termina relacionando Murilo ao poeta francês Henri Michaux.
“O Mundo sitiado” – livro bem-vindo de um pesquisador competente; obra fundamental para o estudo da relação entre poesia & guerra.